Um Saci centenário
O ano de 2017 marca o
centenário de uma inusitada publicação gestada pelo
entusiasmo do escritor Monteiro Lobato. Trata-se do
afamado livro “O Sacy-Pererê – Resultado de um
Inquérito”, que surgiu em 1917 como proposta apresentada
aos leitores do jornal “O Estado de São Paulo” para que
os mesmos enviassem informações sobre o duende
brasileiro.
As colaborações superaram as expectativas de todos e um
ano depois, em 1918, foram compiladas em forma de livro.
Há uma ou outra intervenção de Lobato no livro, mas
basicamente são coletâneas de cartas de leitores
enviadas ao jornal. A obra tornou-se referência,
posteriormente, pela riqueza de informações que trouxe
sobre o mito do Saci-Pererê. Percebe-se, pela leitura do
“Inquérito”, que a figura do Saci não apresentava uma
uniformidade, variando de lugar para lugar, de região
para região. A capa do livro, por exemplo, apresenta um
Saci com porrete na mão e chifres na testa.
Adelino Brandão, no artigo “Presença do Saci”, publicado
na Revista do Arquivo Municipal (nº CLXXXII, ano 1971),
adverte que a figura do Saci, “estilizada na figura do
pretinho unípede, que fuma cachimbo, usa um barrete
vermelho e se diverte dando nó na crina dos cavalos”
(BRANDÃO, 1971, p. 18), resultou de um processo de
muitas metamorfoses e transformações.
Saci com duas pernas, Saci branco, Saci indígena...
Atualmente o pesquisador e escritor Olívio Jekupé tem se
esforçado em mostrar que a origem do nosso Saci está
entre os indígenas brasileiros. Maria Luíza Campos
Aroeira, no livro “Minhas Atividades” já dizia que o
Saci era fruto da imaginação das três principais etnias
formadoras do povo brasileiro. De acordo com essa
autora, primitivamente o Saci era indígena mesmo e
chamava-se Yaci Yaterê.
Por outro lado, José Carlos Rossato, no livro “Saci”,
chama a atenção para o fato de que “primitivamente o
Saci surgiu como um Mito ornitomórfico, isto é, um
pássaro encantado” (ROSSATO, s/d, p. 17). O mesmo autor
apresenta uma lista de seres fantásticos de diversos
países e que são correspondentes ou análogos ao nosso
Saci: Gremlim, nos Estados Unidos; Fradinho da Mão
Furada em Portugal; Curilo na Inglaterra; Kobolde na
Alemanha.
Curiosamente, a historiadora Ecléa Bosi recolheu uma
informação interessante. Um de seus entrevistados para a
sua tese de doutorado, que se converteu no livro
“Memória e Sociedade – Lembranças de Velhos”, apresenta
o seguinte testemunho:
“A respeito do meu pai tenho que contar que ele viu o
saci. O saci brasileiro tem uma perna só, mas o saci
italiano tem duas pernas. Chamava-se, pelo dialeto que
falávamos em casa, scazzamuriddu, parece-me que quer
dizer aquele que salta muros. Era pequeno, baixinho,
arteiro, sabia onde estavam os tesouros e os dava para
quem ficasse com o chapéu dele. Minha mãe dizia: ‘Você é
tão bobo que deixou o saci fugir com o boné’” (BOSI,
1994, p. 224).
Pois é. Passados cem anos ainda nos deparamos com o Saci
metamorfoseado, nos confundindo e logrando, realizando
as suas artimanhas para não ser capturado pela nossa
razão, cujo único intento é destruir o que de belo e
humano a imaginação criou.
Carlos Carvalho Cavalheiro
16.01.2017
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