História 37

O mito do saci em Sorocaba

Aluísio de Almeida, do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Sorocaba.

                 “O Sacy Pererê”, subtítulo “Resultado de um inquérito”, Secção de Obras do “Estado de São Paulo”, sem data, ortografia antiga, 291 páginas, com ilustrações devidas a quadros encomendados a alguns pintores, por exemplo: o saci emaranhando as crinas dos cavalos, o saci assustando o viajante de cima de uma porteira, etc.

                Sem nome do autor. Trata-se de uma reunião em livro do famoso inquérito começado por Monteiro Lobato no “Estadinho” de 25 de janeiro de 1917 com as comunicações dos leitores, quase todos do nosso Estado, menos um fluminense e alguns mineiros. A maioria deles eram adultos e velhos residentes na Capital mas havendo passado a infância nas fazendas e cidades pequenas, exceto um que narra aparições no bairro urbano do Pari e outro que caçava passarinho entre o Piques e a que agora é a Avenida Paulista. Oitenta por cento das lendas vieram por boca das amas negras e negros velhos, as outras por reminiscências de caboclos.

                Poucos informantes assinaram os nomes e por isso em nossa região notamos apenas um em Itapeva, um em Porangaba (então chamada Bela Vista de Tatuí), uma senhora de Itu e, aqui na cidade de Sorocaba o Sr. Luiz Fleury, que não pode ser outro senão o saudoso escritor e poeta Luiz Gonzaga Fleury, então jovem e que depois se tornou autor notável.

                Seu depoimento ocupa oito páginas do volume e encerra, como todos os outros, segundo o costume da época, com expressões de bom gosto literário, mas é o que mais se aproxima da linguagem dos entrevistados. Essas páginas pertencem à história do dialeto e do folclore, palavra que nem Monteiro Lobato empregava, substituindo-a pelo vocábulo mitologia.

                Começou lembrando o saci segundo “a Catarina” que lhos contara quando teria seus sete anos de idade. Era portanto, um saci de 1890 por aí. Seria a Catarina a preta da casa?

                Passou a entrevistar uma velha sem nome, do seu tempo e outra a que deu o nome suposto de Nha Rolinha.

                Eis os traços principais do saci em Sorocaba, segundo Luiz Fleury, e no qual algumas pessoas simples da cidade e do bairro do Ipatinga, mais algumas crianças de famílias que tinham empregadas velhas, acreditaram até 1917.

                Desde quando? Ora, desde os primeiros povoadores, século 17, pois o mito do Saci é luso-índio-africano, conforme Monteiro Lobato. Acrescentaríamos que não saci somente africano, nem somente índio, pois Anchieta e os jesuítas não o mencionaram, nem somente português, pois os gnomos e anões europeus têm duas pernas. Foi o mestiçamento que o formou. Ele é mameluco ou bandeirante, pois existe somente na região chamada Paulistania (centro-sul do país). Uns querem que seja só tupi pela palavra, mas os bandeirantes eram bilíngues, inclusive em Sorocaba. Os que me parecem mais razoáveis acham até que o nome é onomatopéia. Há uma ave que diz saci-perere, saperé ou cereré, e é o próprio saci metamorfoseado.

                Voltemos ao nosso saci tricentenário, como era em 1917.

                Andava as vezes em bandos, à noite falando sacipererê (alguns depoimentos de outros lugares confirmam). Trançava a noite as crinas dos cavalos, formando um estribo e galopava, cavalgando no pescoço.

                Achava as coisas se a gente o amarrasse com rosário de capim e dissesse: “só te solto se me achares isto”. De certo o amarilho era simbólico, mas alguns outros depoimentos falam da dificuldade de laçar o talzinho com o rosário, concretamente. É ligeirinho e dá medo. Podiam prendê-lo com uma palha de três nós pegada num redemoinho.

                Gente corajosa havia que exigia riquezas para soltar o sujeitinho. Outros conseguiam dinheiro entregando-lhe a carapuça vermelha, se antes conseguissem pegá-la.

                O saci gostava de montar na garupa de cavaleiro solitário, assobiando. Numa dessas ocasiões, o cavaleiro – zaz – surrupiou-lhe o barretinho. O diabrete humilhou-se e arrumou uma pilha de ouro para a sua vítima.

                Esses assaltantes – o comentário é meu – que hoje enchem as colunas dos jornais, deviam passear a cavalo, na hora de suas façanhas, pelo campo do Tinga.

                Segundo a entrevista fleuriana, um ateu cabeludo, em plena rua sorocabana, teve de rezar para ver-se livre do saci que o trançou. Forjou uma oração, pois desaprendeu. Não era bom ter cisco num canto da casa, porque o saci aparecia dentro dele. O saci “tormento”, um padre muito religioso, tirando-lhe o rosário.

                A Nha Rolinha contou que “um defunto compadre, morador no Itinga, tinha visto um Saci, certa noite, entrar na cozinha de sua casa, atraído por um pote de cangica, preparado para um muchirão. O compadre estava deitado em quarto contíguo a cozinha, ficara estarrecido, balbuciando orações. O saci pulando, pulando, chegou até ao pé do pote, trepou acima, mergulhou-se na cangica. E toca a fartar-se. Comeu, comeu, comeu, e quando ficou enjoado, vomitou de novo no pote!”.

                Assim transcreveu literalmente o bom entrevistador a linguagem de Nha Rolinha, que acrescentava que o saci faz gorar ovos, chupa o sangue dos cavalos, peteca brasas, é “coisa-ruim”, batizado, isto é, gente batizado que vira Diabo, por ser malvado.

                Nos “50 contos populares de São Paulo”, publiquei “O Saci e o Cristo”, onde Cristo está por Eucaristia. Aqui em minha casa, me contou a estória o saudoso Benedito José Ribeiro, em 1946. O saci rouba o fumo da velha e só vai embora mediante a recitação do bendito da Eucaristia.

                Em 1976, Jacyra Pereira, de antiga família local e com um ramo de Sarapuí escreveu para mim a mais bela estória do saci: o saci se muda junto.

                Era um casal de velhos que se cansou das amolações do saci e resolveu se mudar para outro sítio. Estavam chegando, quando de uma árvore o saci lhes perguntou:

                - Para onde “nós” vamos mudando?

                Então resolveram voltar para casa. O sujeitinho se mudava junto.

                Pedi ao meu jovem amigo Antonio Rodrigues que me escrevesse uma. Lembrou-se do saci de Brigadeiro Tobias, a ele contada por um amigo adventista que a atribuiu a um seu avô.

                Noto nessa estória a velha atribuição ao saci do mel feito de puxar os lençóis a quem dorme, a palavra “atormentar”, do depoimento colhido por Luiz Fleury, a novidade do relho e das latas amarradas às cabras. Latas, artigo moderno. Judiar das criações, costume antigo do saci.

                Acho que devo inserir textualmente, como é regra, o texto do informante:

                “Certa vez um colega meu contou que seu avô morava num sítio, e certa noite ele ouviu umas vozes esquisitas no quintal. Lá estava o velho e sua velha deitados, pois já era tarde da noite. Conta ele que sua casa era velha, tinha um buraco na parede que até enxergava a lua do outro lado, então foi por ali que o saci puxou sua coberta, e depois começou a pular nela, sujando toda, então o velho xingava o saci, de palavrões, daí era pior, quanto mais ele xingava o saci mais sujava a sua coberta. Então ele disse: vou pegar meu relho e dar nesse saci, pois pegou o relho, abriu a porta bem devagar e deu relhada no saci. O saci correu e para atormentar o velho ele amarrou latas nas cabras que tinha ali e começou o barulho em volta da casa. Logo parou. Então o velho viu na escuridão da casa um foguinho que vinha. Era o saci pitando no seu cachimbo. Então o velho cobriu a cabeça e o saci ergueu sua cama e depois deu-lhe um tapa no ouvido. Ele ficou surdo. Logo ele lembrou de rezar e então o saci quando percebeu aquilo desapareceu e nunca mais veio atormentar o casal”.

 

(Publicado originalmente no jornal Cruzeiro do Sul, 09 ago 1977. Artigo gentilmente cedido para publicação pelo IHGGS – Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Sorocaba).


 

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