O SACI DA MOITA
Paulo de
Tarso Riccordi
Tem gente
que diz que não existe saci, baseado apenas no fato de
não conhecer ninguém que viu (quanta coisa que nunca
apareceu e a multidão acredita!). Mas essas pessoas não
param pra pensar que há muitas razões hoje em dia que
reduzem as chances de aparecer saci, o que não implica
em sua inexistência.
Primeiro,
quase todo mundo se mudou para as cidades, que é onde
sacis não vão de jeito nenhum. Pros que ficaram no meio
rural, as queimadas e as motoserras estão acabando com
todo o mato para abrir espaço às pastagens, acabando com
os capões na beira de riachos e as clareiras
ensombradas, notórios abrigos do passaredo e da sacizada.
Eu sei disso
por experiência própria. Na fazenda onde me criei (me
criaram, propriamente dito), tinha mato fechado, tinha
capão de mato, tinha mata rala e tinha um riozinho que
atravessava nossa terra, o trecho todo protegido por um
teto de copas de altas árvores que se fechavam lá em
cima.
Como se sabe
(na verdade, há quem saiba e quem não sabe), sacis
gostam de sombra. Dizem que eles se escondem na mata que
é para não serem avistados. É também por isso, mas o
motivo principal é simplesmente porque eles gostam muito
do frescor da floresta e do canto da passarada, que é lá
onde habitam.
Foi ali que
vi meu primeiro saci.
Lá em casa a
gente era obrigado a deitar depois do almoço.
Terminávamos o doce e tínhamos que marchar para os
quartos, sestear. Com os postigos fechados, o quarto
ficava feito noite se não havia alguma fresta ou buraco
de cupim a filtrar um risco de sol no pó flutuante. Há
tortura maior quer fazer criança ficar deitada em
silêncio pros adultos sestearem? Duvido. Ficávamos, meus
irmãos e primos esperando a casa de aquietar. Fugíamos
dos quartos quando ouvíamos o ronco no quarto dos
velhos.
Lá fora a
unidade de propósitos se desfazia. Mariel puxava as
meninas ao pomar, comer as frutas destinadas aos doces
de tacho e vedadas a nós na forma natural. Sabe-se lá
confiada em quê, minha prima afirmava que os sacis
tinham o mesmo paladar que ela e algum dia ainda iria
encontrá-los empoleirados em um pessegueiro. Já Renato e
os meninos preferiam sair a campo aberto para pegar
cavalos e montá-los em pêlo, feito índios de fita de
faroeste, como prova de maestria e coragem. A tese de
meu irmão (ele sempre tinha uma tese) era de que era
mais fácil encontrar saci junto à cavalhada, fazendo
molecagem com os animais, amarrando as caudas como que
pra passeio em dia santo. Era montar nos mais velozes e
ficar à espera de que, sem mais nem menos, algum bagual
saísse corcoveando ou prorrompesse em disparada coxilha
acima. O jogo começava então, com dois valentes a
apertar o bagual enlouquecido pelos flancos e jogar-lhe
sobre o lombo um pano pesado, porque ali, sem dúvida,
havia um saci. Em tese.
Eu preferia
sair sozinho, a buscar o silêncio e o frescor de uma
clareira à beira do arroio. Disse silêncio mas falei
mal, porque essa era a hora em que as cigarras cantavam
tudo o que sabiam e ainda improvisavam outro tanto. Era
ali que eu gostava de ficar, às vezes com os pés na água
fresca, às vezes deitado junto a uma moita, pensando
bobagens.
Pois foi
nesse rincão que me apareceu o saci desse meu causo.
Aliás, apareceu, não; quem apareceu fui eu, porque ele
já estava na minha moita. Fiquei parado em meio a um
passo que ia completar, como que em brincadeira de
mandraque, com medo de fazer ruído e espantar o
bichinho. Ele, quietinho lá na moita, como quem dorme, e
eu aqui, perna suspensa na caminhada interrompida já me
formigando pela má posição. Foi quando me apoiei num
tronco fino pra me ajeitar que o saci me olhou. Assim
mesmo. Virou a cabeça, me olhou firme nos olhos e ergueu
um dedinho pra me impor silêncio. Eu estava surpreso por
ter encontrado o primeiro saci de minha vida – e ainda
não conhecia ninguém que tivesse visto um e duvidava das
histórias de nosso peão Atillano – e ainda me sobreveio
mais essa do saci me mandar ficar em silêncio! Mas como
alma de criança agüenta tudo, o inusitado se fez normal
naquele instante porque o sacizinho me indicou o porquê
do imperativo: o canto das cigarras atraíra um tangará,
não sei se pra cantar com aquele coro, ou para
alimentar-se dele. O fato é que nesse momento o bichinho
estava cantando e era por isso que o saci dera por ali.
Ficamos nós,
não sei que tempo, parados à distância, atentos ao canto
comprido do tangará, que parece uma melodia inteira, à
catraca das cigarras, ao murmúrio do rio, ao chocalhar
das copas das árvores tocadas pelo vento. Quando acabou
a música e o passarinho se foi, permanecemos ainda um
tanto suspensos na ponta da melodia. Então um galho seco
caiu, uma ovelha baliu e o sacizinho rompeu a magia e
partiu saltitante, um olho na trilha e outro em mim,
acho que para cuidar se eu não iria dar-lhe o bote.
Continuei
voltando àquele recanto, que era meu sítio secreto, mas
nunca mais saci nenhum voltou ali. E, coincidência ou
não, tampouco o tangará, embora meu irmão e seu Atillano
insistam em dizer que os tangarás foram extintos por
aqui há muitos e muitos anos. Mas pra mim, que já vi até
saci, vai dizer que não tem tangará? Ora, tenha
paciência e bota essa cachola a funcionar: tá na cara
que foi o saci quem trouxe. Vai lá procurar e logo
aparece algum malvado com gaiola quebrada reclamando que
lhe roubaram o passarinho.
São Luiz do Paraitinga, SP,
1°/11/ 2003, primeiro Dia do Saci. |